sexta-feira, 7 de dezembro de 2012





"Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação das aritméticas humanas, dizemos aos abúlicos, Querer é poder, como se as realidades bestiais do mundo não se divertissem a inverter todos os dias a posição relativa dos verbos, dizemos aos indecisos, Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar estrangulamentos, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos, e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida."

Trecho de A Caverna - José Saramago

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Segundo diário mínimo - Como Tomar Um Sorvete - Umberto Eco




Quando eu era pequeno, compravam-se dois tipos de sorvete para as crianças, vendidos em carrocinhas brancas com teto prateado: as casquinhas de dez centavos ou o biscoito de vinte. As casquinhas de dez centavos eram mínimas, cabiam perfeitamente na mão de uma criança e se confeccionavam tirando o sorvete do balde com a concha adequada e acumulando-o em cima do cone de massa. As avós nos aconselhavam a só comer uma parte da casquinha, jogando fora o fundo em ponta, porque havia sido tocado pela mão do sorveteiro (no entanto, era esta a parte melhor e mais crocante, todos a comiam escondidos, fingindo tê-la jogado fora).
O biscoito de vinte centavos, a cialda, era confeccionado com um aparelho especial, também prateado, que comprimia duas superfícies circulares de massa contra uma seção cilíndrica de sorvete. Fazia-se correr a língua pelo interstício até ela não conseguir mais alcançar o núcleo central do sorvete, e a essa altura se comia tudo, pois as superfícies já estariam moles e devidamente impregnadas do néctar. As avós não tinham nada a dizer; em teoria, os biscoitos só tinham contato direto com a máquina: na prática o sorveteiro os pegava com as mãos para entregá-los, mas era impossível identificar a zona infectada.
Eu sentia grande fascínio por alguns coetâneos meus cujos pais adquiriam não um biscoito de vinte centavos, mas duas casquinhas de dez. Estes privilegiados saíam desfilando orgulhosos com um sorvete na mão direita e outro na esquerda e, movendo com agilidade a cabeça, lambiam ora um ora outro. Esta liturgia me parecia tão suntuosamente invejável que muitas vezes pedi para poder celebrá-la. Em vão. Meus pais eram inflexíveis: um sorvete de vinte centavos sim, mas dois de dez centavos absolutamente não.
Como todos podem ver, nem a matemática, nem a economia e nem a dietética justificavam esta recusa. E nem mesmo a higiene, contanto que depois se jogassem fora as extremidades dos dois cones. Uma piedosa justificação argumentava, na verdade falaciosamente, que um menino ocupado em ficar correndo os olhos de um sorvete para o outro estaria mais inclinado a tropeçar em pedras soltas, degraus ou irregularidades quaisquer do calçamento. De maneira obscura, eu intuía que devia haver algum outro motivo, cruelmente pedagógico, do qual porém não conseguia me dar conta.
Hoje, habitante e vítima de uma sociedade de consumo e do desperdício (o que certamente não era o caso dos anos trinta), compreendo que aqueles meus entes queridos, hoje desaparecidos, estavam com a razão. Dois sorvetes de dez centavos em lugar de um de vinte não eram economicamente um desperdício, mas sem dúvida o eram simbolicamente. Por isso mesmo eu os desejava tanto: porque dois sorvetes sugeriam um excesso. E era justamente por isso que me eram negados: porque parecia uma indecência, um insulto à miséria, uma ostentação de privilégio fictício, um luxo injustificado. Só tomavam dois sorvetes as crianças estragadas, aquelas que eram justamente castigadas nas histórias, como Pinóquio quando desprezava a casca e o talo da maçã. E os pais que encorajavam esta fraqueza dos pequenos parvenus educavam os filhos no teatro idiota do "quero-mas-não-posso", ou então os estavam preparando, como diríamos hoje, para se apresentarem ao check-in da classe turística portando um falso Gucci comprado num camelô da beira da praia de Rimini.
Este apólogo corre o risco de parecer desprovido de moral, num mundo onde a sociedade de consumo tenta estragar também os adultos, e lhes promete sempre algo a mais, do reloginho incluído na embalagem à medalha oferecida para quem comprar a revista. Como os pais daqueles glutôes ambidestros que eu tanto invejava, a sociedade de consumo finge dar mais, mas na verdade dá por vinte centavos aquilo que vale vinte centavos. Jogamos fora o rádio velho para comprar o que promete também um toca-fitas auto-reverse, mas algumas inexplicáveis fraquezas da estrutura interna fazem com que o novo rádio dure somente um ano. O novo carro econômico tem assentos de couro, dois espelhos laterais reguláveis do interior e o painel em madeira, mas durará muito menos que a gloriosa Fiat 500 que, mesmo quando quebrava, sempre voltava a funcionar com um pontapé.
Mas a moral daqueles tempos queria que fôssemos todos espartanos, e a de hoje quer nos transformar a todos em sibaritas.
(1989)


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Trecho de O Colóquio de Monos e Una - Edgar Allan Poe





Entrementes imensas cidades fumarentas assomaram, inumeráveis. As verdes folhas murcharam sob o hálito quente das fornalhas. O formoso rosto da Natureza foi deformado como pela devastação de alguma repulsiva enfermidade. E parece-me, doce Una, que até mesmo nossa adormecida percepção do forçado e do artificial pode ter nos detido aqui. Mas agora ao que tudo indica operamos nossa própria ruína pela perversão de nosso gosto, ou antes, pelo cego desleixo de seu cultivo nas escolas. Pois, em verdade, era nessa crise que o gosto unicamente - essa faculdade que, detendo uma posição intermediária entre o puro intelecto e o senso moral, jamais poderia, sem risco, ter sido negligenciada - era agora que o gosto unicamente poderia nos ter conduzido nobremente de volta à Beleza, à Natureza, à Vida. Mas ai do puro espírito contemplativo e da intuição majestosa de Platão!

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Livro Simplesmente, Greca... - Joel La Banca




O livro "Simplesmente, Greca...", da  autoria de Joel La Banca, relata fatos importantes
sobre imigrantes italianos, destacando entre eles os três irmãos: Rafael, Vincenzo e Giuseppe Greca e sua vinda para o Brasil.
Sendo versados na atividade agrária preenchem as condições do país hospedeiro que busca trabalhadores para o campo e para a lavoura.
Acresce que os três irmãos contavam, ainda, com trunfo insuperável, eram artífices "canteiros" e "calceteiros", arte e ofício característicos da sua região, aos quais foram afeitos, desde muito cedo e dominavam com apuro e maestria.
O autor, reverenciando a fonte primeira, Vincenzo Greca e Maria Rosa Naccarato Greca, abre a cortina do passado, volta no tempo e busca o local e os momentos em que tudo começou.
São filhos do referido casal: Carmela Greca ( Bianco), Giuseppe Greca (José Greca Sobrinho), Angela Maria Greca ( Gomes Ferreira) - (Angelina), Luis Greca, Emília Greca (Perrini ), Mario José João Greca e Maria Francisca Greca ( Canellas ) - (Marieta).
Exemplares do "Simplesmente, Greca..." foram disponibilizados na Divisão de Documentação Paranaense da Biblioteca Pública do Estado do Paraná, em Curitiba e no Centro de Documentação da Casa da Memória da Fundação Cultural de Curitiba.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Vivência - "Dos Velhos Tempos" - Hermann Hesse





Na minha terra natal mora um velho professor de ginásio, um dos bons, que todos os anos me escreve uma carta. Vive na sua casinha de solitário e no seu jardim, quieto e pensativo, e quando na cidade se enterra alguém, é em geral algum antigo aluno seu. Esse velho senhor me escreveu, de novo, há pouco tempo. E embora eu mesmo tenha opinião bem diversa, e lhe tenha feito fortes objeções na minha resposta, sua consideração sobre os velhos e os novos tempos me parece digna de ser lida, por isso transcrevo aqui essa parte de sua carta, que diz:
"Quer me parecer que o mundo de hoje está separado daquele outro, que ainda existia e vivia na minha juventude, por um abismo maior do que aquele que separava as outras gerações. Não posso ter certeza disso, e a história parece ensinar que meu ponto de vista é um engano, que acontece com todos os que envelhecem. Pois o rio da evolução corre sempre, e em todos os tempos os pais foram superados pelos filhos, que não mais os entendiam. Ainda assim, não posso mudar meu sentimento de que, ao menos no nosso país e no nosso povo, nos últimos decênios, tudo mudou muito, mais profundamente, como se nossa história tomasse um curso muito mais rápido do que nos tempos antigos.
Devo confessar o que me parece o mais essencial nessa transformação dos tempos? Para resumir, existe uma redução do respeito e da pureza, que se nota por toda parte. Não quero louvar os velhos tempos. Sei que sempre houve uma minoria de bons e úteis, um pensador para casa mil oradores, um piedoso para mil infiéis, um livre para mil filisteus. No fundo, talvez nada tenha sido melhor que hoje, mas no todo, parece-me que até há alguns decênios havia em nossos hábitos de vida mais decência e mais modéstia. Agora, tudo se realiza com grande alarido e muito egoísmo. O mundo transborda da convicção de que estamos no umbral dum período de ouro, mas ninguém está satisfeito.
Por toda parte se prega, se fala, se escreve sobre ciência e cultura, beleza e personalidade. Mas parecem esquecer totalmente que essas valiosas coisas só frutificam no silêncio e se desenvolvem durante a noite. Todas as ciências e descobertas tem uma pressa exagerada em frutificarem logo, querendo mostrar resultados concretos.
O reconhecimento duma lei natural, em si, fato íntimo e sublime, é transposto com duvidosa precipitação para o terreno da prática; é como se, entendendo a lei do seu crescimento, pudéssemos urgir uma árvore a desenvolver-se mais rapidamente. Por toda parte remexem-se raízes, fazem-se experiências, busca-se fortuna, coisas de que prefiro desconfiar. Já não há, para intelectuais e poetas, nada a calar. Tudo é comentado, desvendado, iluminado, cada pesquisa pretende ser logo uma sabedoria. Um novo conhecimento, uma nova descoberta microscópica modifica os ensinamentos espirituais dos teólogos e logo aparece um escritor escrevendo um romance sobre o assunto. Aquelas antigas questões sagradas sobre as origens da nossa vida são temas atuais de conversas, influenciadas, na ciência e na arte, por todos os modismos do momento. Parece não haver mais capacidade de silêncio e espera, nem distinção entre o que é grande ou pequeno.
No dia-a-dia comum acontece a mesma coisa. Regras de vida ou saúde, formas de construção e mobiliário, objetos de longo uso, que outrora tinham certa estabilidade, hoje mudam tão depressa quanto os vestidos. A cada ano chega-se ao máximo em cada terreno, realiza-se o definitivo. Na vida de cada família isso tudo leva a uma severa cisão entre o interior e o exterior, entre aparência e intimidade, e, com isso, a uma decadência dos costumes e da arte de viver, cujo traço principal é uma espantosa falta de imaginação.
Quase me parece que a verdadeira doença dos nossos tempos é essa. A imaginação é a mãe do contentamento, do humor, da arte de viver. E só se desenvolve no alicerce de uma íntima harmonia entre o indivíduo e os objetos que o rodeiam. Esse ambiente não precisa ser belo, singular, encantador. Basta que tenhamos tempo de nos envolvermos e crescermos junto com ele, e isso hoje em dia falta por toda parte. Quem só usa roupas novíssimas, que tem de renovar e trocar continuamente, perde com isso um pedaço de terreno para a sua imaginação. Não sabe como sabe ser vivo, amável, querido, engraçado, rico em recordações e excitante um velho chapéu, uma velha caça de montaria, um velho gibão. Da mesma forma, uma mesa ou cadeira antigas, um armário familiar e fiel, um fogão, um tirador de botas. Além disso, a xícara em que bebemos na nossa infância, a cômoda de nossos avós, o velho relógio!
Certamente, não é preciso viver sempre no mesmo lugar e nos mesmos aposentos, com os mesmos objetos. Pode-se passar a vida em viagens, sem lar, e ainda assim ter a mais rica imaginação. Mas também esse homem com certeza carregará consigo algum objeto amado, do qual jamais quererá se separar, ainda que seja apenas um anel, um relógio de bolso, uma faca ou carteira.
Bem, estou-me desviando do assunto. Queria dizer que o atual anseio de mudanças empobrece e prejudica as forças da nossa alma, induzindo, desde a cosmovisão até os utensílios domésticos, a uma aversão pelo que é estável; já dificultamos às crianças o poetar, o criar, a convivência com objetos, pois as irritamos com demasiados brinquedos e livros de figuras. E dificultamos aos adultos a crença, o conhecimento e fixação interiores de tal maneira, porque lhes oferecemos, fácil e barato, em lojas, tudo aquilo que devia ser conquistado devagar e com devoção. Todos pensam ter de agarrar tudo, e ada é tão facilitado quanto a passagem da igreja para a falta de religião, dali para Darwin, desse para Buda, de Buda a Nietzsche ou Haeckel ou seja quem for, sem esforço ou muito estudo. Tornou-se tão fácil estar bem informado sem precisar aprender.
Certamente, a humanidade não sucumbirá por causa disso. E é igualmente certo que, hoje como sempre, os de intensa vida interior desistirão de todos os caminhos e vitórias fáceis. Mas isso se tornou difícil. E a vida no todo, o nível médio da vida e do convívio caseiro e cotidiano diminuiu. Talvez fosse infantil e insensato, outrora, muitos pais de família cultivarem agradáveis disparates como tocar flauta, exercitar a arte caligráfica, desmontar e montar um relógio, ou fazer trabalhos de colagem com caixas de papelão. Mas eram coisas inofensivas, e eles se sentiam contentes. Se no gênio, que luta solitário, brota sedenta uma inquietação eterna que o salva, para a grande massa não é menos necessária e redentora a satisfação simples, para que o todo permaneça em equilíbrio.
Antigamente, havia nas famílias, e mesmo nas comunidades maiores, uma união através das lembranças íntimas, um apego a pequenas coisas do mundo exterior, que agia com secreta força, provocando um delicioso sentimento de lar. Havia um conhecimento mútuo dos mínimos traços, que deveria ser perigoso para os racionalistas, mas para os homens imaginativos era uma fonte de união, e, além disso, de alegria e humor. Existiam tantos chamados "originais", porque se tinha prazer em pequenas singularidades, dando-lhes atenção. E, como isso fosse exercitado reciprocamente, nascia daí um tom divertido e agradável na convivência, e nas conversas. Naturalmente, ainda hoje, toda a verdadeira família tem o seu tom, os seus segredos, brincadeiras e falas secretas, e isso será sempre assim. Mas além da família falta, em geral, nas comunidades atuais esse colorido e esse estado de espírito e o que falta em aconchego não pode ser substituído pela quantidade de roupas, comidas, espaço e sensações."

Assim escreveu meu velho professor. Como eu disse, não compartilho inteiramente de sua opinião. Mas acho que há nela alguma verdade.          
(1907)
                                                                                                                                                 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Trecho de "Uma Paixão no Deserto" - Balzac



 - E então - disse-me ela - li a sua defesa em favor dos animais; mas como acabaram duas pessoas tão bem-feitas para se compreenderem?
 - Aí está!... Acabaram como acabam todas as grandes paixões, por um mal-entendido. Acredita-se, de um lado e de outro, numa traição, ninguém se explica por orgulho, e ambos rompem por teimosia.
 - E às vezes nos mais belos momentos - disse ela. Basta um olhar, uma exclamação... Pois bem, termine a história.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

O Arquidiabo Belfegor - Niccolò Machiavelli


Assim rezam as antigas crônicas de Florença.

"Um homem muito santo que, em meio da devassidão daquela época, dava o exemplo de uma vida edificante, conta que, absorto um dia em piedosas meditações, viu, graças a forças de suas preces, que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores, e que iam para o inferno, lamentavam-se - se não todas, pelo menos a maior parte - de estarem condenadas a este infortúnio apenas pelo fato de terem tido mulher.
Minos e Radamanto, bem como os outros juízes do inferno, não podiam deixar de ouvir com assombro tais lamentações, e não acreditavam que as calúnias levantadas com o sexo feminino tivessem o menor fundamento. Entretanto, como tais lamentações se repetissem com frequência, levaram-nas ao conhecimento de Plutão, o qual ordenou que todos os príncipes do inferno se reunissem para examinar minuciosamente o assunto, e deliberar sobre o modo mais conveniente de se provar a falsidade ou a justiça daquelas queixas.
Por isso, foi convocado o infernal Conselho, e Plutão expressou-se nestes termos:
  “Caríssimos: embora seja soberano deste reino, por disposição celestial e sorte fatídica e irrevogável, não estando sujeito portanto a qualquer julgamento divino ou humano, decidi solicitar vosso conselho sobre um assunto que poderia trazer vergonha ao nosso império — já que submeter-se às leis e ouvir o parecer de outros é a maior prova de sabedoria que podem dar os que têm poder. A questão é a seguinte: todas as almas dos homens que chegam a este reino atribuem sua sorte às mulheres; como isso me parece impossível, temo que aceitando tais alegações passemos por crédulos e se não as aceitamos corramos o risco de ser considerados pouco severos — atitudes que caracterizam os levianos e os injustos e cujos inconvenientes queremos evitar. Por isso, não tendo encontrado o modo justo de proceder, convoquei-vos para receber vosso conselho sobre a maneira como este reino, que até aqui viveu sem infâmia, possa continuar a viver assim”.
O assunto pareceu a todos os príncipes de grande importância; mas, embora concordassem que era necessário elucidá-lo, não estavam de acordo sobre como fazê-lo. Alguns diziam que seria melhor enviar um diabo ao mundo, que sob forma humana tomasse conhecimento da verdade; outros pensavam que era possível chegar ao mesmo resultado sem tanto trabalho, bastando para isso torturar algumas almas. Como a maioria participasse da primeira opinião, foi essa a idéia que prevaleceu; porém, como não se encontrasse um voluntário para a missão, deliberou-se recorrer à sorte. Foi assim escolhido Belfegor, que tinha o título de arquidiabo porque antes da sua perdição fora arcanjo.
Embora tivesse preferido não executar esse trabalho, Belfegor foi obrigado por ordens de Plutão a cumprir a determinação do conselho diabólico, dentro de condições que tinham sido objeto de solene deliberação: recebimento imediato de cem mil ducados, com os quais deveria visitar o mundo e sob forma de homem casar-se, vivendo com a esposa dez anos, após o que deveria fingir a morte, voltar ao inferno e relatar aos seus superiores quais eram os ônus e as inconveniências do matrimônio. Durante o tempo da experiência, estaria sujeito a todos os males que afligem os homens, resultantes da pobreza, da prisão, da doença e todos os demais infortúnios em que os homens incorrem, só podendo deles defender-se com a própria astúcia.
Recebido o dinheiro, e sujeito a tais condições, Belfegor viajou para o mundo. Acompanhado por um séquito entrou com todas as honras em Florença — cidade que escolheu como a mais promissora para a aplicação do seu dinheiro em empréstimos.
Com o nome de Rodrigo de Castela, alugou casa no bairro de Ognisanti, ocultando sua identidade com a explicação de que viera da Espanha, tendo vivido anteriormente na Síria, onde fizera fortuna em Alepo. Visitava agora a Itália para procurar esposa em país mais ameno e civilizado, mais conforme a seus costumes. Rodrigo era um homem de trinta anos, de grande beleza; e como em poucos dias já demonstrara sua riqueza e magnanimidade, muitos nobres que tinham filhas casadouras e recursos limitados se apressaram a oferecê-las; dentre todas Rodrigo elegeu uma jovem belíssima — Honesta, filha de Américo Donati, que tinha três outras filhas, quase em idade de se casar, além de três filhos, já homens feitos.
Embora pertencesse a família nobre, de excelente reputação na cidade, possuía meios muitos escassos, devido às pesadas obrigações familiares.
As bodas foram magníficas, nada lhes faltando do que exigiam as circunstâncias. Como ao sair do inferno Rodrigo se sujeitara a todas as paixões humanas, começou logo a se entusiasmar com as pompas e honrarias deste mundo, comprazendo-se com os elogios que recebia, o que o levava a novas e importantes despesas. Antes de decorrido muito tempo se enamorara da bela Honesta; não podia suportar vê-la em desprazer ou tristeza. Honesta levara à nova casa, com a nobreza e a beleza que a distinguiam, um orgulho tão desmedido que o próprio Lúcifer jamais experimentara. Rodrigo, que conhecia a soberba de uma e da outra, achava a da mulher mais intensa — mas esse orgulho ainda aumentou quando Honesta tomou consciência da afeição que lhe tinha o marido. Como sentiu que podia dominá-lo, começou a lhe dar ordens sem qualquer respeito ou piedade; quando alguma coisa lhe era negada, agredia o esposo com palavras vis e injuriosas, provocando-lhe grande perturbação. Contudo, pela consideração que tinha pelo sogro, os cunhados, toda a família, bem como pelo dever matrimonial (mas sobretudo pelo grande amor que o ligava a Honesta), Rodrigo se comportava sempre com muita paciência.
Não falarei dos grandes gastos que fazia para contentá-la e mantê-la vestida na moda, dando-lhe tudo o que os costumes da nossa cidade exigem continuamente. Para estar em paz com a mulher, teve que ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe custou muito dinheiro. Depois disso, precisou custear a viagem de dois cunhados, ao Levante e ao Poente, com mercadorias; para o terceiro, abriu uma loja de ourives em Florença. Assim se foi a maior parte da sua fortuna.
Além disso, durante o Carnaval e no dia de São João, que toda a cidade comemora, seguindo antiga tradição (quando muitos cidadãos nobres e ricos organizam festas esplêndidas), para não se sentir inferior às outras senhoras Honesta queria que Rodrigo promovesse um grande baile, que superasse todos os demais.
Pelas razões que mencionei, Rodrigo suportava tudo; não se importaria de continuar fazendo o que se via obrigado a fazer se com isso pudesse manter a tranqüilidade no ambiente familiar, aguardando pacificamente a ruína inevitável. Mas acontecia o contrário: com as despesas elevadíssimas a natureza insolente da mulher causava-lhe numerosos incômodos. Não havia criados que durassem mais do que poucos dias, de modo que Rodrigo nunca tinha empregados de confiança que cuidassem das suas coisas; os outros diabos, que tinha trazido consigo para o mundo, tratando-os como familiares, preferiram retomar ao fogo infernal a ter que viver no mundo sob as ordens de Honesta.
Imerso nessa vida inquieta e tumultuada, seus recursos tragados pelas despesas desordenadas que fazia, Rodrigo alimentava ainda a esperança dos lucros que esperava receber do Levante e do Poente; como tinha bom crédito, passou a viver de empréstimos. Circulavam muitas promissórias em seu nome, e isso foi observado pelos credores; sua posição já se enfraquecia quando chegaram notícias de que um dos irmãos de Honesta havia perdido no jogo todos os recursos recebidos de Rodrigo, e que o outro se havia afogado com as mercadorias que trazia -sem a proteção de nenhum seguro. Logo que tais notícias se difundiram, os credores de Rodrigo se reuniram em assembléia, suspeitando que estivesse arruinado. Como não tinham vencido ainda as letras em seu poder, decidiram que seria conveniente observá-lo para que não escapasse na primeira oportunidade.
De seu lado, sem ver remédio para o caso e sabendo-se limitado no uso do poder demoníaco, Rodrigo deliberou tentar a fuga.. Certa manhã, partiu a cavalo pela porta de Prato, junto à qual residia. Logo que souberam da sua partida os credores se levantaram aos brados, recorrendo aos magistrados e conclamando o povo a perseguir o foragido.
Rodrigo não se tinha afastado ainda uma milha da cidade quando, reconhecendo a gravidade da situação, decidiu abandonar a estrada, internando-se pelo campo em busca de melhor sorte. Como era difícil continuar cavalgando, devido às muitas fossas que cruzavam a região, deixou a montaria e pôs-se a caminhar. Cruzando os campos recobertos de vinhas e caniços, que existem naquela região em grande quantidade, chegou à casa de João Mateus de Brica, que trabalhava para João de Bene, perto de Perétola. Teve a sorte de encontrar o próprio João Mateus, que se preparava para dar de comer aos animais; apresentou-se, prometendo que o faria rico para sempre se ele o salvasse dos que o perseguiam querendo fazê-lo morrer na prisão — dando-lhe antes de partir uma amostra dessa recompensa, para que acreditasse no que dizia. Se faltasse à palavra empenhada, deixar-se-ia entregar aos inimigos. Embora um simples camponês, João Mateus era esperto; vendo que nada teria a perder, prometeu salvar Rodrigo, escondendo-o num monte de estrume, sob ramos secoS e outras coisas que tinha juntado para fazer fogo.
Logo em seguida chegaram os perseguidores; contudo, por mais que ameaçassem João Mateus, não conseguiram arrancar-lhe uma palavra de delação. Continuaram então sua busca e, depois de ter procurado em vão todo aquele dia e a jornada seguinte, voltaram para Florença, mortos de fadiga.
Passado o perigo, João Mateus ajudou Rodrigo a deixar o esconderijo cobrando-lhe a palavra dada. Rodrigo respondeu: “Meu irmão, devo-te muito e quero testemunhar meu reconhecimento: por isso, para que não duvides da minha palavra, dir-te-ei quem sou”. Revelou em seguida em pormenor sua origem, as condições que lhe haviam sido impostas ao deixar o inferno, seu casamento em Florença. Disse-lhe também de que forma pretendia enriquecê-lo: quando ouvisse dizer que uma mulher estava possuída pelo demônio saberia que a causa era ele e que só deixaria o corpo da infeliz quando João Mateus viesse exorcizá-la, o que lhe abriria a oportunidade de cobrar o que quisesse pelo serviço. Tudo combinado, Belfagor desapareceu.
Alguns dias depois correu em Florença o rumor de que uma das filhas de Messer Ambrósio Amadei, casada com Bonaiuto Tebalducci, estava possuída pelo demônio. Seus pais lhe deram todos os remédios habituais: cobriram-na com a cabeça de São Zenóbio e o manto de São João Gualberto — mas nada incomodava Rodrigo. Para deixar bem claro que a moça estava de fato possuída e que aquilo era mais do que uma fantasia da imaginação, falava em latim e discutia questões filosóficas, revelando pecados alheios, o que causava admiração a todos. Por isso Messer Ambrósio vivia descontente e já tinha perdido as esperanças de curar a filha, depois de experimentar todos esses remédios, quando foi procurado por João Mateus, que lhe prometeu restituir-lhe a saúde mediante o pagamento de quinhentos florins para comprar umas terras em Perétola. Messer Ambrósio aceitou e João Mateus, depois de algumas orações e cerimônias para embelezar a coisa, sussurrou ao ouvido da jovem: “Rodrigo, vim procurar-te para que cumpras a promessa feita”. Rodrigo respondeu: “Está bem. Mas isso não basta, para que fiques rico. Logo que sair daqui entrarei no corpo da filha do rei Carlos, de Nápoles, do qual não sairei sem tua interferência. Aproveitarás para pedir a recompensa que quiseres.
Depois, espero que me deixes tranqüilo”. Com isto abandonou o corpo da jovem, para alegria e admiração de toda Florença.
Não passou muito tempo e em toda Itália se soube do que havia acontecido com a filha do rei Carlos. Como não se pudesse curá-la, e ouvindo o rei notícias sobre João Mateus, mandou chamá-lo em Florença: ele foi a Nápoles e com algumas cerimônias livrou-a do diabo. Este, porém, antes de partir lhe disse: “Como vês, cumpri minha promessa de enriquecer-te; nada mais te devo. Aconselho-te, portanto, a não aparecer mais à minha frente porque, assim como até aqui te fiz o bem, doravante poderei fazer-te o mal”.
João Mateus regressou a Florença riquíssimo, pois o rei lhe deu mais de cinqüenta mil ducados; pensava gozar tranqüilamente essa riqueza, sem imaginar que Rodrigo pudesse algum dia fazer-lhe o mal. No entanto, pouco depois começou a correr o rumor de que uma das filhas do rei Luís VII tinha sido possuída pelo demônio. A notícia perturbou João Mateus, que se pôs a pensar, preocupado, no poderio do monarca francês e na ameaça feita por Rodrigo. Com efeito, não tendo podido curar a princesa, o rei mandou um escudeiro em busca de João Mateus; como este pretextasse indisposição, o monarca recorreu ao governo de Florença, que o obrigou a obedecer.
Viajando a Paris contra a vontade, o camponês explicou ao rei que de fato tinha curado algumas possuídas, mas isso não significava que pudesse salvar qualquer pessoa naquela situação; o mal em questão podia ser tão grave que as ameaças, os exorcismos e toda a religião às vezes não surtiam efeito. Estava pronto porém a cumprir seu dever, pedindo desde logo perdão se não conseguisse bons resultados. Irritado, o rei respondeu que se não lhe curasse a filha mandaria enforcá-lo. A ameaça alarmou João Mateus que aproximando-se da doente, falou-lhe ao ouvido, apresentando-se com humildade a Rodrigo e lembrando-lhe o serviço que lhe tinha prestado. Mostrou como seria um exemplo extremo de ingratidão abandoná-lo numa situação de tal perigo.
Mas Rodrigo respondeu: “Infame traidor! Como te atreves aparecer perante mim? Tu te vanglorias de haver enriquecido graças a mim? Vou mostrar a ti e a todos — que eu posso dar e retirar a meu bel-prazer: antes que possas escapar vou providenciar para que sejas enforcado”.
Vendo-se assim rechaçado, João Mateus procurou explorar outro caminho; mandando afastar a possuída, disse ao rei: “Majestade: como havia prevenido, há alguns espíritos tão malignos que é impossível obter qualquer resultado com eles. Infelizmente, o caso presente parece pertencer a essa categoria. Quero fazer uma última tentativa: se tiver êxito, tanto eu como Vossa Majestade teremos alcançado nossos propósitos; em caso contrário, estarei sujeito à misericórdia que lhe inspirar minha inocência. O que proponho é o seguinte: Vossa Majestade erigirá, na praça de Notre Dame, um amplo palco, que possa abrigar todos os vossos barões e todos os clérigos desta cidade, ornamentado com seda e ouro; no centro, haverá um altar. Domingo vindouro, de manhã, Vossa Majestade, acompanhado por todos os sacerdotes, os príncipes e os nobres do reino, com suas vestimentas mais ricas, irá com grande solenidade até a praça para ouvir uma missa solene, após a qual se chamará a possuída. Num dos cantos da praça colocaremos uns vinte músicos pelo menos, com trompetes, trompas, tambores, cornamusas, tímbales e outros instrumentos ruidosos; a um sinal do meu chapéu esses músicos se aproximarão, tocando com grande alarido. Espero que desse modo, e com o auxílio de certos outros remédios secretos, seja possível expulsar o demônio”.
O rei deu imediatamente as ordens necessárias. Quando chegou o domingo, tudo estava arranjado como previsto, os principais do reino reunidos no palco e a praça repleta de povo. Celebrou-se a missa e a princesa foi trazida por dois bispos e um grande número de acompanhantes. Quando Rodrigo viu tudo aquilo, ficou estupefato, refletindo: “Qual será o objetivo dessa aglomeração? Pensarão em amedrontar-me com tanta pompa? Ignora talvez João Mateus que estou habituado à visão dos magníficos espetáculos do céu e dos suplícios infernais? Vou castigá-lo como merece”.
Foi quando João se aproximou do diabo, pedindo-lhe que partisse. Rodrigo respondeu: “Ah, que excelente idéia! Que esperas fazer com tal aparato? Pensas escapar assim ao meu poder e à cólera do rei? Vilão, não conseguirás fugir da forca!”. Nova súplica foi a réplica de João, respondidas com outras injúrias. Julgando inútil perder mais tempo, João Mateus deu o sinal combinado com o chapéu e os músicos, pondo-se a tocar, começaram a aproximar-se do palco, fazendo um ruído que subia aos céus. Espantado, Rodrigo perguntou, com preocupação, o que significava aquilo. João lhe respondeu, afetando grade medo: “Que Deus me perdoe, meu caro Rodrigo, é tua mulher que vem te buscar”.
Foi realmente, extraordinário o susto que levou Rodrigo ao ouvir a referência a esposa: um espanto tão grande que sem refletir mais sobre se o que João dizia era possível ou razoável, escapou, trêmulo de medo, sem uma palavra.
Abandonou assim o corpo da princesa preferindo regressar ao inferno para relatar suas aventuras a ter que se sujeitar outra vez aos aborrecimentos, às dificuldades e perigos que acompanham o vínculo matrimonial. De volta ao reino diabólico, Belfegor testemunhou os males trazidos pelas mulheres. E João Mateus, que foi mais sabido do que o demônio, retornou muito alegre a suas terras.