segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Vivência - "Dos Velhos Tempos" - Hermann Hesse





Na minha terra natal mora um velho professor de ginásio, um dos bons, que todos os anos me escreve uma carta. Vive na sua casinha de solitário e no seu jardim, quieto e pensativo, e quando na cidade se enterra alguém, é em geral algum antigo aluno seu. Esse velho senhor me escreveu, de novo, há pouco tempo. E embora eu mesmo tenha opinião bem diversa, e lhe tenha feito fortes objeções na minha resposta, sua consideração sobre os velhos e os novos tempos me parece digna de ser lida, por isso transcrevo aqui essa parte de sua carta, que diz:
"Quer me parecer que o mundo de hoje está separado daquele outro, que ainda existia e vivia na minha juventude, por um abismo maior do que aquele que separava as outras gerações. Não posso ter certeza disso, e a história parece ensinar que meu ponto de vista é um engano, que acontece com todos os que envelhecem. Pois o rio da evolução corre sempre, e em todos os tempos os pais foram superados pelos filhos, que não mais os entendiam. Ainda assim, não posso mudar meu sentimento de que, ao menos no nosso país e no nosso povo, nos últimos decênios, tudo mudou muito, mais profundamente, como se nossa história tomasse um curso muito mais rápido do que nos tempos antigos.
Devo confessar o que me parece o mais essencial nessa transformação dos tempos? Para resumir, existe uma redução do respeito e da pureza, que se nota por toda parte. Não quero louvar os velhos tempos. Sei que sempre houve uma minoria de bons e úteis, um pensador para casa mil oradores, um piedoso para mil infiéis, um livre para mil filisteus. No fundo, talvez nada tenha sido melhor que hoje, mas no todo, parece-me que até há alguns decênios havia em nossos hábitos de vida mais decência e mais modéstia. Agora, tudo se realiza com grande alarido e muito egoísmo. O mundo transborda da convicção de que estamos no umbral dum período de ouro, mas ninguém está satisfeito.
Por toda parte se prega, se fala, se escreve sobre ciência e cultura, beleza e personalidade. Mas parecem esquecer totalmente que essas valiosas coisas só frutificam no silêncio e se desenvolvem durante a noite. Todas as ciências e descobertas tem uma pressa exagerada em frutificarem logo, querendo mostrar resultados concretos.
O reconhecimento duma lei natural, em si, fato íntimo e sublime, é transposto com duvidosa precipitação para o terreno da prática; é como se, entendendo a lei do seu crescimento, pudéssemos urgir uma árvore a desenvolver-se mais rapidamente. Por toda parte remexem-se raízes, fazem-se experiências, busca-se fortuna, coisas de que prefiro desconfiar. Já não há, para intelectuais e poetas, nada a calar. Tudo é comentado, desvendado, iluminado, cada pesquisa pretende ser logo uma sabedoria. Um novo conhecimento, uma nova descoberta microscópica modifica os ensinamentos espirituais dos teólogos e logo aparece um escritor escrevendo um romance sobre o assunto. Aquelas antigas questões sagradas sobre as origens da nossa vida são temas atuais de conversas, influenciadas, na ciência e na arte, por todos os modismos do momento. Parece não haver mais capacidade de silêncio e espera, nem distinção entre o que é grande ou pequeno.
No dia-a-dia comum acontece a mesma coisa. Regras de vida ou saúde, formas de construção e mobiliário, objetos de longo uso, que outrora tinham certa estabilidade, hoje mudam tão depressa quanto os vestidos. A cada ano chega-se ao máximo em cada terreno, realiza-se o definitivo. Na vida de cada família isso tudo leva a uma severa cisão entre o interior e o exterior, entre aparência e intimidade, e, com isso, a uma decadência dos costumes e da arte de viver, cujo traço principal é uma espantosa falta de imaginação.
Quase me parece que a verdadeira doença dos nossos tempos é essa. A imaginação é a mãe do contentamento, do humor, da arte de viver. E só se desenvolve no alicerce de uma íntima harmonia entre o indivíduo e os objetos que o rodeiam. Esse ambiente não precisa ser belo, singular, encantador. Basta que tenhamos tempo de nos envolvermos e crescermos junto com ele, e isso hoje em dia falta por toda parte. Quem só usa roupas novíssimas, que tem de renovar e trocar continuamente, perde com isso um pedaço de terreno para a sua imaginação. Não sabe como sabe ser vivo, amável, querido, engraçado, rico em recordações e excitante um velho chapéu, uma velha caça de montaria, um velho gibão. Da mesma forma, uma mesa ou cadeira antigas, um armário familiar e fiel, um fogão, um tirador de botas. Além disso, a xícara em que bebemos na nossa infância, a cômoda de nossos avós, o velho relógio!
Certamente, não é preciso viver sempre no mesmo lugar e nos mesmos aposentos, com os mesmos objetos. Pode-se passar a vida em viagens, sem lar, e ainda assim ter a mais rica imaginação. Mas também esse homem com certeza carregará consigo algum objeto amado, do qual jamais quererá se separar, ainda que seja apenas um anel, um relógio de bolso, uma faca ou carteira.
Bem, estou-me desviando do assunto. Queria dizer que o atual anseio de mudanças empobrece e prejudica as forças da nossa alma, induzindo, desde a cosmovisão até os utensílios domésticos, a uma aversão pelo que é estável; já dificultamos às crianças o poetar, o criar, a convivência com objetos, pois as irritamos com demasiados brinquedos e livros de figuras. E dificultamos aos adultos a crença, o conhecimento e fixação interiores de tal maneira, porque lhes oferecemos, fácil e barato, em lojas, tudo aquilo que devia ser conquistado devagar e com devoção. Todos pensam ter de agarrar tudo, e ada é tão facilitado quanto a passagem da igreja para a falta de religião, dali para Darwin, desse para Buda, de Buda a Nietzsche ou Haeckel ou seja quem for, sem esforço ou muito estudo. Tornou-se tão fácil estar bem informado sem precisar aprender.
Certamente, a humanidade não sucumbirá por causa disso. E é igualmente certo que, hoje como sempre, os de intensa vida interior desistirão de todos os caminhos e vitórias fáceis. Mas isso se tornou difícil. E a vida no todo, o nível médio da vida e do convívio caseiro e cotidiano diminuiu. Talvez fosse infantil e insensato, outrora, muitos pais de família cultivarem agradáveis disparates como tocar flauta, exercitar a arte caligráfica, desmontar e montar um relógio, ou fazer trabalhos de colagem com caixas de papelão. Mas eram coisas inofensivas, e eles se sentiam contentes. Se no gênio, que luta solitário, brota sedenta uma inquietação eterna que o salva, para a grande massa não é menos necessária e redentora a satisfação simples, para que o todo permaneça em equilíbrio.
Antigamente, havia nas famílias, e mesmo nas comunidades maiores, uma união através das lembranças íntimas, um apego a pequenas coisas do mundo exterior, que agia com secreta força, provocando um delicioso sentimento de lar. Havia um conhecimento mútuo dos mínimos traços, que deveria ser perigoso para os racionalistas, mas para os homens imaginativos era uma fonte de união, e, além disso, de alegria e humor. Existiam tantos chamados "originais", porque se tinha prazer em pequenas singularidades, dando-lhes atenção. E, como isso fosse exercitado reciprocamente, nascia daí um tom divertido e agradável na convivência, e nas conversas. Naturalmente, ainda hoje, toda a verdadeira família tem o seu tom, os seus segredos, brincadeiras e falas secretas, e isso será sempre assim. Mas além da família falta, em geral, nas comunidades atuais esse colorido e esse estado de espírito e o que falta em aconchego não pode ser substituído pela quantidade de roupas, comidas, espaço e sensações."

Assim escreveu meu velho professor. Como eu disse, não compartilho inteiramente de sua opinião. Mas acho que há nela alguma verdade.          
(1907)
                                                                                                                                                 

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