segunda-feira, 30 de julho de 2012

O Arquidiabo Belfegor - Niccolò Machiavelli


Assim rezam as antigas crônicas de Florença.

"Um homem muito santo que, em meio da devassidão daquela época, dava o exemplo de uma vida edificante, conta que, absorto um dia em piedosas meditações, viu, graças a forças de suas preces, que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores, e que iam para o inferno, lamentavam-se - se não todas, pelo menos a maior parte - de estarem condenadas a este infortúnio apenas pelo fato de terem tido mulher.
Minos e Radamanto, bem como os outros juízes do inferno, não podiam deixar de ouvir com assombro tais lamentações, e não acreditavam que as calúnias levantadas com o sexo feminino tivessem o menor fundamento. Entretanto, como tais lamentações se repetissem com frequência, levaram-nas ao conhecimento de Plutão, o qual ordenou que todos os príncipes do inferno se reunissem para examinar minuciosamente o assunto, e deliberar sobre o modo mais conveniente de se provar a falsidade ou a justiça daquelas queixas.
Por isso, foi convocado o infernal Conselho, e Plutão expressou-se nestes termos:
  “Caríssimos: embora seja soberano deste reino, por disposição celestial e sorte fatídica e irrevogável, não estando sujeito portanto a qualquer julgamento divino ou humano, decidi solicitar vosso conselho sobre um assunto que poderia trazer vergonha ao nosso império — já que submeter-se às leis e ouvir o parecer de outros é a maior prova de sabedoria que podem dar os que têm poder. A questão é a seguinte: todas as almas dos homens que chegam a este reino atribuem sua sorte às mulheres; como isso me parece impossível, temo que aceitando tais alegações passemos por crédulos e se não as aceitamos corramos o risco de ser considerados pouco severos — atitudes que caracterizam os levianos e os injustos e cujos inconvenientes queremos evitar. Por isso, não tendo encontrado o modo justo de proceder, convoquei-vos para receber vosso conselho sobre a maneira como este reino, que até aqui viveu sem infâmia, possa continuar a viver assim”.
O assunto pareceu a todos os príncipes de grande importância; mas, embora concordassem que era necessário elucidá-lo, não estavam de acordo sobre como fazê-lo. Alguns diziam que seria melhor enviar um diabo ao mundo, que sob forma humana tomasse conhecimento da verdade; outros pensavam que era possível chegar ao mesmo resultado sem tanto trabalho, bastando para isso torturar algumas almas. Como a maioria participasse da primeira opinião, foi essa a idéia que prevaleceu; porém, como não se encontrasse um voluntário para a missão, deliberou-se recorrer à sorte. Foi assim escolhido Belfegor, que tinha o título de arquidiabo porque antes da sua perdição fora arcanjo.
Embora tivesse preferido não executar esse trabalho, Belfegor foi obrigado por ordens de Plutão a cumprir a determinação do conselho diabólico, dentro de condições que tinham sido objeto de solene deliberação: recebimento imediato de cem mil ducados, com os quais deveria visitar o mundo e sob forma de homem casar-se, vivendo com a esposa dez anos, após o que deveria fingir a morte, voltar ao inferno e relatar aos seus superiores quais eram os ônus e as inconveniências do matrimônio. Durante o tempo da experiência, estaria sujeito a todos os males que afligem os homens, resultantes da pobreza, da prisão, da doença e todos os demais infortúnios em que os homens incorrem, só podendo deles defender-se com a própria astúcia.
Recebido o dinheiro, e sujeito a tais condições, Belfegor viajou para o mundo. Acompanhado por um séquito entrou com todas as honras em Florença — cidade que escolheu como a mais promissora para a aplicação do seu dinheiro em empréstimos.
Com o nome de Rodrigo de Castela, alugou casa no bairro de Ognisanti, ocultando sua identidade com a explicação de que viera da Espanha, tendo vivido anteriormente na Síria, onde fizera fortuna em Alepo. Visitava agora a Itália para procurar esposa em país mais ameno e civilizado, mais conforme a seus costumes. Rodrigo era um homem de trinta anos, de grande beleza; e como em poucos dias já demonstrara sua riqueza e magnanimidade, muitos nobres que tinham filhas casadouras e recursos limitados se apressaram a oferecê-las; dentre todas Rodrigo elegeu uma jovem belíssima — Honesta, filha de Américo Donati, que tinha três outras filhas, quase em idade de se casar, além de três filhos, já homens feitos.
Embora pertencesse a família nobre, de excelente reputação na cidade, possuía meios muitos escassos, devido às pesadas obrigações familiares.
As bodas foram magníficas, nada lhes faltando do que exigiam as circunstâncias. Como ao sair do inferno Rodrigo se sujeitara a todas as paixões humanas, começou logo a se entusiasmar com as pompas e honrarias deste mundo, comprazendo-se com os elogios que recebia, o que o levava a novas e importantes despesas. Antes de decorrido muito tempo se enamorara da bela Honesta; não podia suportar vê-la em desprazer ou tristeza. Honesta levara à nova casa, com a nobreza e a beleza que a distinguiam, um orgulho tão desmedido que o próprio Lúcifer jamais experimentara. Rodrigo, que conhecia a soberba de uma e da outra, achava a da mulher mais intensa — mas esse orgulho ainda aumentou quando Honesta tomou consciência da afeição que lhe tinha o marido. Como sentiu que podia dominá-lo, começou a lhe dar ordens sem qualquer respeito ou piedade; quando alguma coisa lhe era negada, agredia o esposo com palavras vis e injuriosas, provocando-lhe grande perturbação. Contudo, pela consideração que tinha pelo sogro, os cunhados, toda a família, bem como pelo dever matrimonial (mas sobretudo pelo grande amor que o ligava a Honesta), Rodrigo se comportava sempre com muita paciência.
Não falarei dos grandes gastos que fazia para contentá-la e mantê-la vestida na moda, dando-lhe tudo o que os costumes da nossa cidade exigem continuamente. Para estar em paz com a mulher, teve que ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe custou muito dinheiro. Depois disso, precisou custear a viagem de dois cunhados, ao Levante e ao Poente, com mercadorias; para o terceiro, abriu uma loja de ourives em Florença. Assim se foi a maior parte da sua fortuna.
Além disso, durante o Carnaval e no dia de São João, que toda a cidade comemora, seguindo antiga tradição (quando muitos cidadãos nobres e ricos organizam festas esplêndidas), para não se sentir inferior às outras senhoras Honesta queria que Rodrigo promovesse um grande baile, que superasse todos os demais.
Pelas razões que mencionei, Rodrigo suportava tudo; não se importaria de continuar fazendo o que se via obrigado a fazer se com isso pudesse manter a tranqüilidade no ambiente familiar, aguardando pacificamente a ruína inevitável. Mas acontecia o contrário: com as despesas elevadíssimas a natureza insolente da mulher causava-lhe numerosos incômodos. Não havia criados que durassem mais do que poucos dias, de modo que Rodrigo nunca tinha empregados de confiança que cuidassem das suas coisas; os outros diabos, que tinha trazido consigo para o mundo, tratando-os como familiares, preferiram retomar ao fogo infernal a ter que viver no mundo sob as ordens de Honesta.
Imerso nessa vida inquieta e tumultuada, seus recursos tragados pelas despesas desordenadas que fazia, Rodrigo alimentava ainda a esperança dos lucros que esperava receber do Levante e do Poente; como tinha bom crédito, passou a viver de empréstimos. Circulavam muitas promissórias em seu nome, e isso foi observado pelos credores; sua posição já se enfraquecia quando chegaram notícias de que um dos irmãos de Honesta havia perdido no jogo todos os recursos recebidos de Rodrigo, e que o outro se havia afogado com as mercadorias que trazia -sem a proteção de nenhum seguro. Logo que tais notícias se difundiram, os credores de Rodrigo se reuniram em assembléia, suspeitando que estivesse arruinado. Como não tinham vencido ainda as letras em seu poder, decidiram que seria conveniente observá-lo para que não escapasse na primeira oportunidade.
De seu lado, sem ver remédio para o caso e sabendo-se limitado no uso do poder demoníaco, Rodrigo deliberou tentar a fuga.. Certa manhã, partiu a cavalo pela porta de Prato, junto à qual residia. Logo que souberam da sua partida os credores se levantaram aos brados, recorrendo aos magistrados e conclamando o povo a perseguir o foragido.
Rodrigo não se tinha afastado ainda uma milha da cidade quando, reconhecendo a gravidade da situação, decidiu abandonar a estrada, internando-se pelo campo em busca de melhor sorte. Como era difícil continuar cavalgando, devido às muitas fossas que cruzavam a região, deixou a montaria e pôs-se a caminhar. Cruzando os campos recobertos de vinhas e caniços, que existem naquela região em grande quantidade, chegou à casa de João Mateus de Brica, que trabalhava para João de Bene, perto de Perétola. Teve a sorte de encontrar o próprio João Mateus, que se preparava para dar de comer aos animais; apresentou-se, prometendo que o faria rico para sempre se ele o salvasse dos que o perseguiam querendo fazê-lo morrer na prisão — dando-lhe antes de partir uma amostra dessa recompensa, para que acreditasse no que dizia. Se faltasse à palavra empenhada, deixar-se-ia entregar aos inimigos. Embora um simples camponês, João Mateus era esperto; vendo que nada teria a perder, prometeu salvar Rodrigo, escondendo-o num monte de estrume, sob ramos secoS e outras coisas que tinha juntado para fazer fogo.
Logo em seguida chegaram os perseguidores; contudo, por mais que ameaçassem João Mateus, não conseguiram arrancar-lhe uma palavra de delação. Continuaram então sua busca e, depois de ter procurado em vão todo aquele dia e a jornada seguinte, voltaram para Florença, mortos de fadiga.
Passado o perigo, João Mateus ajudou Rodrigo a deixar o esconderijo cobrando-lhe a palavra dada. Rodrigo respondeu: “Meu irmão, devo-te muito e quero testemunhar meu reconhecimento: por isso, para que não duvides da minha palavra, dir-te-ei quem sou”. Revelou em seguida em pormenor sua origem, as condições que lhe haviam sido impostas ao deixar o inferno, seu casamento em Florença. Disse-lhe também de que forma pretendia enriquecê-lo: quando ouvisse dizer que uma mulher estava possuída pelo demônio saberia que a causa era ele e que só deixaria o corpo da infeliz quando João Mateus viesse exorcizá-la, o que lhe abriria a oportunidade de cobrar o que quisesse pelo serviço. Tudo combinado, Belfagor desapareceu.
Alguns dias depois correu em Florença o rumor de que uma das filhas de Messer Ambrósio Amadei, casada com Bonaiuto Tebalducci, estava possuída pelo demônio. Seus pais lhe deram todos os remédios habituais: cobriram-na com a cabeça de São Zenóbio e o manto de São João Gualberto — mas nada incomodava Rodrigo. Para deixar bem claro que a moça estava de fato possuída e que aquilo era mais do que uma fantasia da imaginação, falava em latim e discutia questões filosóficas, revelando pecados alheios, o que causava admiração a todos. Por isso Messer Ambrósio vivia descontente e já tinha perdido as esperanças de curar a filha, depois de experimentar todos esses remédios, quando foi procurado por João Mateus, que lhe prometeu restituir-lhe a saúde mediante o pagamento de quinhentos florins para comprar umas terras em Perétola. Messer Ambrósio aceitou e João Mateus, depois de algumas orações e cerimônias para embelezar a coisa, sussurrou ao ouvido da jovem: “Rodrigo, vim procurar-te para que cumpras a promessa feita”. Rodrigo respondeu: “Está bem. Mas isso não basta, para que fiques rico. Logo que sair daqui entrarei no corpo da filha do rei Carlos, de Nápoles, do qual não sairei sem tua interferência. Aproveitarás para pedir a recompensa que quiseres.
Depois, espero que me deixes tranqüilo”. Com isto abandonou o corpo da jovem, para alegria e admiração de toda Florença.
Não passou muito tempo e em toda Itália se soube do que havia acontecido com a filha do rei Carlos. Como não se pudesse curá-la, e ouvindo o rei notícias sobre João Mateus, mandou chamá-lo em Florença: ele foi a Nápoles e com algumas cerimônias livrou-a do diabo. Este, porém, antes de partir lhe disse: “Como vês, cumpri minha promessa de enriquecer-te; nada mais te devo. Aconselho-te, portanto, a não aparecer mais à minha frente porque, assim como até aqui te fiz o bem, doravante poderei fazer-te o mal”.
João Mateus regressou a Florença riquíssimo, pois o rei lhe deu mais de cinqüenta mil ducados; pensava gozar tranqüilamente essa riqueza, sem imaginar que Rodrigo pudesse algum dia fazer-lhe o mal. No entanto, pouco depois começou a correr o rumor de que uma das filhas do rei Luís VII tinha sido possuída pelo demônio. A notícia perturbou João Mateus, que se pôs a pensar, preocupado, no poderio do monarca francês e na ameaça feita por Rodrigo. Com efeito, não tendo podido curar a princesa, o rei mandou um escudeiro em busca de João Mateus; como este pretextasse indisposição, o monarca recorreu ao governo de Florença, que o obrigou a obedecer.
Viajando a Paris contra a vontade, o camponês explicou ao rei que de fato tinha curado algumas possuídas, mas isso não significava que pudesse salvar qualquer pessoa naquela situação; o mal em questão podia ser tão grave que as ameaças, os exorcismos e toda a religião às vezes não surtiam efeito. Estava pronto porém a cumprir seu dever, pedindo desde logo perdão se não conseguisse bons resultados. Irritado, o rei respondeu que se não lhe curasse a filha mandaria enforcá-lo. A ameaça alarmou João Mateus que aproximando-se da doente, falou-lhe ao ouvido, apresentando-se com humildade a Rodrigo e lembrando-lhe o serviço que lhe tinha prestado. Mostrou como seria um exemplo extremo de ingratidão abandoná-lo numa situação de tal perigo.
Mas Rodrigo respondeu: “Infame traidor! Como te atreves aparecer perante mim? Tu te vanglorias de haver enriquecido graças a mim? Vou mostrar a ti e a todos — que eu posso dar e retirar a meu bel-prazer: antes que possas escapar vou providenciar para que sejas enforcado”.
Vendo-se assim rechaçado, João Mateus procurou explorar outro caminho; mandando afastar a possuída, disse ao rei: “Majestade: como havia prevenido, há alguns espíritos tão malignos que é impossível obter qualquer resultado com eles. Infelizmente, o caso presente parece pertencer a essa categoria. Quero fazer uma última tentativa: se tiver êxito, tanto eu como Vossa Majestade teremos alcançado nossos propósitos; em caso contrário, estarei sujeito à misericórdia que lhe inspirar minha inocência. O que proponho é o seguinte: Vossa Majestade erigirá, na praça de Notre Dame, um amplo palco, que possa abrigar todos os vossos barões e todos os clérigos desta cidade, ornamentado com seda e ouro; no centro, haverá um altar. Domingo vindouro, de manhã, Vossa Majestade, acompanhado por todos os sacerdotes, os príncipes e os nobres do reino, com suas vestimentas mais ricas, irá com grande solenidade até a praça para ouvir uma missa solene, após a qual se chamará a possuída. Num dos cantos da praça colocaremos uns vinte músicos pelo menos, com trompetes, trompas, tambores, cornamusas, tímbales e outros instrumentos ruidosos; a um sinal do meu chapéu esses músicos se aproximarão, tocando com grande alarido. Espero que desse modo, e com o auxílio de certos outros remédios secretos, seja possível expulsar o demônio”.
O rei deu imediatamente as ordens necessárias. Quando chegou o domingo, tudo estava arranjado como previsto, os principais do reino reunidos no palco e a praça repleta de povo. Celebrou-se a missa e a princesa foi trazida por dois bispos e um grande número de acompanhantes. Quando Rodrigo viu tudo aquilo, ficou estupefato, refletindo: “Qual será o objetivo dessa aglomeração? Pensarão em amedrontar-me com tanta pompa? Ignora talvez João Mateus que estou habituado à visão dos magníficos espetáculos do céu e dos suplícios infernais? Vou castigá-lo como merece”.
Foi quando João se aproximou do diabo, pedindo-lhe que partisse. Rodrigo respondeu: “Ah, que excelente idéia! Que esperas fazer com tal aparato? Pensas escapar assim ao meu poder e à cólera do rei? Vilão, não conseguirás fugir da forca!”. Nova súplica foi a réplica de João, respondidas com outras injúrias. Julgando inútil perder mais tempo, João Mateus deu o sinal combinado com o chapéu e os músicos, pondo-se a tocar, começaram a aproximar-se do palco, fazendo um ruído que subia aos céus. Espantado, Rodrigo perguntou, com preocupação, o que significava aquilo. João lhe respondeu, afetando grade medo: “Que Deus me perdoe, meu caro Rodrigo, é tua mulher que vem te buscar”.
Foi realmente, extraordinário o susto que levou Rodrigo ao ouvir a referência a esposa: um espanto tão grande que sem refletir mais sobre se o que João dizia era possível ou razoável, escapou, trêmulo de medo, sem uma palavra.
Abandonou assim o corpo da princesa preferindo regressar ao inferno para relatar suas aventuras a ter que se sujeitar outra vez aos aborrecimentos, às dificuldades e perigos que acompanham o vínculo matrimonial. De volta ao reino diabólico, Belfegor testemunhou os males trazidos pelas mulheres. E João Mateus, que foi mais sabido do que o demônio, retornou muito alegre a suas terras.

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