quarta-feira, 18 de julho de 2012

O Templo Dourado - Yukio Mishima




"E quando estivesse morto, a própria evidência diria que, qualquer que fosse o caminho que eu tomasse, o resultado seria o mesmo."

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Inadvertência - Tchékhov



Piotr Petróvitch Stríjin, sobrinho da coronela Ivánova, aquela mesma de quem no ano passado furtaram as galochas novas, voltou do batizado exatamente às duas horas da madrugada. Para não acordar os seus, ele despiu-se com cuidado no vestíbulo, passou na ponta dos pés, prendendo a respiração, para o seu dormitório e, sem acender a luz, começou a preparar-se para dormir.
Stríjin leva vida sóbria e regular, tem no rosto uma expressão santimonial, só lê livros religiosos e edificantes, mas no batizado, na alegria pelo bom sucesso de Liubov Spiridonovna, ele permitiu-se tomar quatro cálices de vodca e um copo de vinho, cujo sabor lembrava algo entre vinagre e óleo de rícino. Mas as bebidas espirituosas são semelhantes à água do mar ou à glória: quanto mais se bebe, mais sede se tem... E agora, ao se despir, Stríjin sentia um desejo incoercível de beber.
"Se não me engano, Dáchenka tem vodca no armário, no canto direito", pensava ele. "Se eu tomar um cálice, ela não vai perceber."
Após alguma hesitação,  vencendo o medo, Stríjin dirigiu-se para o armário. Tendo aberto a porta com cuidado, ele apalpou no canto direito a garrafa e o cálice, encheu-o, recolocou a garrafa no lugar, depois se persignou e bebeu-o. E imediatamente aconteceu algo como um milagre. Com força terrível, como a de uma bomba, Stríjin foi atirado do armário para o baú. Diante dos seus olhos dançavam faíscas, faltou-lhe o fôlego, pelo seu corpo inteiro correu uma sensação tal, como se tivesse caído num pântano cheio de sanguessugas. Pareceu-lhe que, em vez de vodca, ele engolira um pedaço de dinamite, que fizera explodir o seu corpo, a casa, toda a viela... Cabeça, braços, pernas - tudo foi arrancado e voava algures, para o diabo, pelo espaço afora...
Durante uns três minutos ele permaneceu sobre o baú, imóvel, sem respirar: depois levantou-se e se perguntou:
 - Onde estou?
A primeira coisa que ele percebeu claramente ao voltar a si foi um cheiro pronunciado de querosene.
 - Meu Senhor do céu, foi querosene que eu bebi em vez de vodca - exclamou ele, horrorizado. - Ai, meus santos!
O pensamento de que estava envenenado atirou-o de um arrepio de frio num suadouro. Que o veneno fora ingerido, era atestado não só pelo cheiro reinante no quarto, como também pelo ardor da boca, as faíscas nos olhos, o badalar de sinos na cabeça e as pontadas no estômago. Sentindo a aproximação da morte e não se iludindo com vãs esperanças, ele desejou despedir-se dos entes mais próximo e dirigiu-se para o quarto de Dáchenka. (Sendo viúvo, ele tinha consigo, como dona da casa, a sua cunhada Dáchenka, uma solteirona).
 -Dáchenka - disse ele com voz lacrimosa, entrando no quarto. Dáchenka querida!
Algo mexeu-se na escuridão e soltou um suspiro profundo.
 - Dáchenka!
 - Hein? O quê? - disse rapidamente uma voz feminina. - É o senhor, Piotr Petróvitch? Já voltou? Então, como foi? Como batizaram a menina? Quem foi a madrinha?
 - A madrinha foi Natália Andrêievna Velikosvétskaia, e o padrinho, Pável Ivánitch Bessónitzin... Eu... Dáchenka, parece que estou morrendo. E a recém-nascida foi chamada de Olimpíada, em homenagem à sua benfeitora...
Eu... Dáchenka, eu bebi querosene...
 - Esta agora! Mas então lá serviram querosene?
 - Confesso que eu queria, sem a sua licença, beber vodca, e... Deus me castigou: inadivertidamente, no escuro, bebi querosena... Que é que vou fazer?
Dáchenka, ouvindo que o armário fora aberto sem sua permissão, animou-se... Rapidamente, acendeu uma vela, saltou da cama e, de camisola, sardenta, ossuda, de papelotes, chapinhou com os pés descalços até o armário.
 - E quem foi que lhe permitiu isso? - perguntou ela com severidade, examinando o interior do armário. - Então a vodca foi posta aí dentro par ao senhor?
 - Mas eu, Dáchenka... eu não bebi vodca, mas querosene... - balbuciava Stríjin, enxugando o suor gelado.
 - E para que precisava mexer no querosene? Então isso é da sua conta? É para o senhor que ele está lá? Ou será que o senhor acha que querosene não custa dinheiro? Hein? Mas o senhor sabe quanto custa hoje o querosene? Sabe?
 - Dáchenka querida! - gemeu Stríjin. - Trata-se de uma questão de vida ou morte, e a senhora fala em dinheiro!
 - Tomou uma bebedeira e mete o nariz no armário! - gritou Dáchenka, batendo a porta do armário com raiva.
 - Oh, monstros, atormentadores! Sofredora que sou, mártir desgraçada, não tenho paz nem de dia, nem de noite! Àspides, basiliscos, Herodes amaldiçoados, oxalá sofram o mesmo no outro mundo! Amanhã mesmo me vou! Sou donzela e não lhe permitirei ficar na minha frente estando eu em trajes menores! Não se atreva a olhar para mim, quando não estou vestida.
E desandou, e desandou... Sabendo que, quando Dáchenka ficava zangada, não era possível dominá-la nem com súplicas, nem com juramentos, nem mesmo com tiros de canhão, Stríjin abanou a mão desanimado, e resolveu procurar um médico. Mas um médico só é fácil de encontrar quando não se precisa dele. Percorrendo três ruas e tocando umas cinco vezes na porta do dr, Tcheparianz e umas sete vezes na do dr, Bultihin, Stríjin correu para a farmácia: quem sabe o farmacêutico poderia ajudá-lo. Aí, depois de longa espera, saiu-lhe ao encontro um boticário miúdo, moreno e crespo, estremunhado, de bata, e com um rosto tão sério e inteligente, de fé judaica.
 - Pelo amor de Deus... Eu lhe suplico! - articulou Stríjin, sufocando. - Dê-me alguma coisa... Agora há pouco, por descuido, eu bebi querosene! Estou morrendo!
 - Peço-lhe que não se excite e que responda às perguntas que eu lhe farei. Já o simples fato de que o senhor está excitado não me permite compreendê-lo. O senhor bebeu querosene? Si-im?
- Sim, querosene! Salve-me, por favor!
O farmacêutico, calmo e sério, aproximou-se do balcão, abriu um livro e mergulhou na leitura. Tendo lido duas páginas, ele encolheu um ombro, depois outro, fez uma careta de desdém e, após pensar um pouco, entrou no aposento adjacente. O relógio bateu quatro horas e, quando ele mostrava quatro e dez, o farmacêutico voltou com outro livro e novamente mergulhou na leitura.
 - Hum! - disse ele, como que perplexo. - Já pelo simples fato de que o senhor não se sente bem, é preciso que o senhor se dirija a um médico, e não à farmácia.
 - Mas eu já estive nos médicos! Não consegui falar com eles!
- Hum!... A nós, farmacêuticos, os senhores não consideram humanos, e incomodam-nos às quatro da madrugada, quando cada cachorro, cada gato tem o seu sossego...
Os senhores não querem compreender nada, e, na sua opinião, nós não somos gente e nossos nervos tem que ser como cordas.
Stríjin ouviu o farmacêutico, suspirou e voltou para casa.
"Quer dizer que o meu destino é morrer!" pensava ele. E sua boca ardia e cheirava querosene, ele sentia pontadas no estômago e nos ouvidos lhe soava: bum, bum, bum!
A cada momento parecia-lhe que o fim já estava próximo e que o coração já não batia mais...
Chegando em casa, ele apressou-se a escrever: "Peço não culpar ninguém pela minha morte", depois fez a sua oração, deitou-se e cobriu-se, cabeça e tudo. Ficou sem dormir até de manhã, esperando a morte, e o tempo todo, na imaginação, ele via como a sua sepultura se cobria de grama verde e fresca e como sobre ela gorjeavam os passarinhos...
Mas de manhã, sentado na cama, ele dizia, sorrindo, a Dáchenka?
 - Quem leva uma vida correta e regrada, minha cara irmãzinha, não há veneno que o afete. Pode-se tomar a mim como exemplo. Eu estava à beira do fim, eu morria, agonizava, e agora - nada. Só tenho um ardor na boca e uma secura na garganta, mas todo o corpo está bom, graças a Deus... E por quê? Por causa da vida regular.
 - Não, isso significa que o querosene não presta! - suspirava Dáchenka, pensando nas despesas e fixando o olhar num ponto. - Significa que o vendeiro não me deu do melhor, mas daquele de um copeque e meio a libra. Mártir que eu sou, sofredora infeliz, monstros torturadores, oxalá passem o mesmo no outro mundo, Herodes amaldiçoados...
E desandou, e desandou...

domingo, 10 de junho de 2012

Trecho de Uma Estréia na Vida - Balzac



Além das recomendações da manhã, Oscar sentia espontaneamente certa aversão por Jorge; sentia-se humilhado ante aquela testemunha da cena do salão de Presles, quando Moreau o atirara aos pés do Conde de Sérisy. A ordem moral tem suas leis, que são implacáveis, e sempre se é castigado por infringi-las. Há sobretudo uma, à qual o próprio animal obedece instintivamente, e sempre. É a que nos ordena fugir de qualquer pessoa que nos foi nociva uma primeira vez, com ou sem intenção, voluntária ou involuntariamente. A criatura de quem recebemos dano ou desprazer sempre nos será funesta. Qualquer que seja a sua categoria social, seja qual for o grau de afeição que nos ligue, é forçoso romper com ela, pois nos é enviada pelo nosso gênio mau. Embora o sentimento cristão se oponha a esse procedimento, a obediência essa lei terrível é essencialmente social e conservadora. A filha de Jacques II, que se sentou no trono do pai, deve ter-lhe feito mais de um ferimento antes da usurpação. Judas seguramente deve ter dado algum golpe funesto a Jesus antes de traí-lo. Há em nós uma vista interior, o olho da alma, que pressente as catástrofes, e a repugnância que sentimos por esse ser fatal é o resultado dessa previsão; se a religião nos ordena vencê-la, fica-nos a desconfiança, cuja voz deve ser incessantemente ouvida.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Trecho de O Cemitério de Praga - Umberto Eco



Ouça mais esta, dizia a Golovinsky: "Para impedir que o povo descubra, por si só, uma nova linha de ação política qualquer, nós o manteremos distraído com várias formas de divertimento: jogos ginásticos, passatempos, paixões de vários gêneros, tabernas, e o convidaremos a participar de competições artísticas e esportivas... Estimularemos o amor pelo luxo desenfreado e aumentaremos os salários, mas isso não trará benefício ao operário, porque simultaneamente acresceremos o preço das substâncias mais necessárias, sob pretexto de maus resultados nos trabalhos agrícolas, Minaremos as bases da produção, semeando os germes da anarquia entre os operários e encorajando-os ao abuso de bebidas alcoólicas. Procuraremos dirigir a opinião pública para toda espécie de teoria fantástica que possa parecer progressista ou liberal."
- Bom, muito bom - dizia Golovinsky. - Mas haveria alguma coisa que caísse bem aos estudantes, além da história das matemáticas? Na Rússia, os estudantes são importantes, são uns cabeças quentes a manter sob controle.
- Aqui está: "Quando estivermos no poder, suprimiremos dos programas educativos todas as matérias que possam perturbar o espírito dos jovens e os reduziremos a criancinhas obedientes, que amarão seu soberano. Em vez de estudar os clássicos e a história antiga, que contem mais exemplos ruins que bons, mandaremos que estudem os problemas do futuro. Cancelaremos da memória dos homens a lembrança dos séculos passados, que poderia ser desagradável para nós. Com uma educação metódica, saberemos eliminar os resíduos da independência de pensamento da qual desde há muito tempo nos aproveitamos para nossos fins... Sobre os livros com menos de trezentas páginas, baixaremos uma taxa dupla, e essa medida obrigará os escritores a publicar obras tão longas que terão poucos leitores. Nós, ao contrário, publicaremos obras baratas para educar a mente do público.

sábado, 2 de junho de 2012




"Os homens nunca fazem o mal tão completa e entusiasticamente como quando o fazem por convicção religiosa."

O Cemitério de Praga - Umberto Eco

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Para ler e Pensar - Hermann Hesse


Não acredito que o futuro nos traga uma humanidade "melhor". Não creio venha ela a ser nem melhor nem pior do que esta. A humanidade é sempre a mesma. O demônio irrompe no ser humano não apenas de maneira velada ou encarnado em criminosos e psicopatas. Muitas vezes e em alta escala, o diabo faz política e dizima povos inteiros.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Histórias Medievais - Hermann Hesse

"Para o 'homem culto' de hoje, o mundo de conceitos e crenças dessas histórias singulares é quando muito uma curiosidade, para muitos até algo ridículo ou odioso, um típico pedaço da 'obscura Idade Média'. Mas se o homem culto de hoje, cujo saber e crença conseguiram unicamente provocar o atual estado de barbárie da Europa, procurar nas Histórias os inícios dessa situação moderna, encontrará ali exatamente essa mal-afamada Idade Média, o período de florescimento do cristianismo europeu e da vida espiritual intuitiva, como um paraíso perdido." E mais: "Quanto mais lucidamente afastarmos nosso coração do cheiro do incenso e das cinzas da penitência, tanto mais depressa voltarão a nos pertencer os valores espirituais intocados daqueles séculos obscuros, e sua literatura". "O traje (dessas histórias) é sempre antigo, mas o conteúdo não é velho nem novo, e sim intemporal, merecendo sempre o nosso interesse, como tudo o que é humano."


                                                            Do "Dialogus Miraculorum"

                                   
                                                           Da interpretação dos sinais



No ano passado o bem-aventurado abade Teobaldo de Eberbach contou-nos o seguinte: Um monge que estava a caminho em algum lugar escutou o cuco chamar. Contou os chamados e chegou ao número vinte e dois. Tomou isso como um sinal de que ainda viveria tal número de anos.
 -Ei - disse ele - viverei mais vinte e dois anos! Por que me enterrar por tanto tempo num convento? Voltarei ao mundo, entregando-me à vida profana, e gozarei das suas alegrias por vinte anos. Nos dois últimos que me restarem, farei penitência.
 Mas Deus, que não gosta de interpretação de sinais, decidiu de outra maneira. Deixou-o viver vida profana nos dois anos que o monge destinara à penitência, e tirou-lhe os outros vinte (deixando-o morrer).


                                                            Da eficácia do exemplo


Um abade da Ordem Negra (Beneditinos), um bom homem de comprovada experiência, tinha monges muito singulares e relapsos. Alguns deles haviam conseguido certo dia diversas espécies de carne e vinhos finos. Com medo do abade, não se atreveram a consumir tais coisas num dos quartos do mosteiro, mas reuniram-se num grande tonel de vinho, levando para lá suas provisões. isso foi delatado ao abade, e, profundamente entristecido com isso, ele chegou correndo, olhou para dentro do tonel, e com sua chegada transformou a alegria dos moleques em tristeza. Viu como estavam assustados, e bancou o alegre, entrou junto deles no barril e disse:
 - Ah, irmãos, queríeis comer e beber aí sem mim? Isso não é justo. Na verdade, vou participar.
Lavou as mãos, comeu e bebeu com eles, e pelo exemplo devolveu-lhes a alegria perdida. No dia seguinte, depois de preparar e instruir o prior, o abade postou-se diante dele no Capítulo, pediu perdão com a maior humildade, fingiu terror e medo, e exclamou?
 - Senhor prior, confesso a vós e a todos os meus irmãos presentes que eu, pecador, caí no pecado da gula, e ontem, secretamente, escondido num tonel de vinho, pequei contra a prescrição e a regra do meu santo pai São Bento, saboreando carne. - E prostou-se no chão preparando-se para a penitência. Quando o prior quis dissuadi-lo, respondeu: - Deixai-me sofrer punição e penitência, pois é melhor pagar aqui do que na outra vida.
Depois da punição e da penitência, voltou ao seu lugar. Mas aqueles monges, com medo de que os chamaria se ocultassem sua culpa, também se ergueram e confessaram seu pecado. O abade mandou dar-lhes severos castigos, conforme combinara antes com outro monge, censurou-os asperamente e ameaçou-os com duas penas para que não acontecesse mais semelhante coisa. Assim, como médico esperto, ele curou pelo exemplo o mal que não pudera combater com palavras.