sexta-feira, 22 de junho de 2012

Inadvertência - Tchékhov



Piotr Petróvitch Stríjin, sobrinho da coronela Ivánova, aquela mesma de quem no ano passado furtaram as galochas novas, voltou do batizado exatamente às duas horas da madrugada. Para não acordar os seus, ele despiu-se com cuidado no vestíbulo, passou na ponta dos pés, prendendo a respiração, para o seu dormitório e, sem acender a luz, começou a preparar-se para dormir.
Stríjin leva vida sóbria e regular, tem no rosto uma expressão santimonial, só lê livros religiosos e edificantes, mas no batizado, na alegria pelo bom sucesso de Liubov Spiridonovna, ele permitiu-se tomar quatro cálices de vodca e um copo de vinho, cujo sabor lembrava algo entre vinagre e óleo de rícino. Mas as bebidas espirituosas são semelhantes à água do mar ou à glória: quanto mais se bebe, mais sede se tem... E agora, ao se despir, Stríjin sentia um desejo incoercível de beber.
"Se não me engano, Dáchenka tem vodca no armário, no canto direito", pensava ele. "Se eu tomar um cálice, ela não vai perceber."
Após alguma hesitação,  vencendo o medo, Stríjin dirigiu-se para o armário. Tendo aberto a porta com cuidado, ele apalpou no canto direito a garrafa e o cálice, encheu-o, recolocou a garrafa no lugar, depois se persignou e bebeu-o. E imediatamente aconteceu algo como um milagre. Com força terrível, como a de uma bomba, Stríjin foi atirado do armário para o baú. Diante dos seus olhos dançavam faíscas, faltou-lhe o fôlego, pelo seu corpo inteiro correu uma sensação tal, como se tivesse caído num pântano cheio de sanguessugas. Pareceu-lhe que, em vez de vodca, ele engolira um pedaço de dinamite, que fizera explodir o seu corpo, a casa, toda a viela... Cabeça, braços, pernas - tudo foi arrancado e voava algures, para o diabo, pelo espaço afora...
Durante uns três minutos ele permaneceu sobre o baú, imóvel, sem respirar: depois levantou-se e se perguntou:
 - Onde estou?
A primeira coisa que ele percebeu claramente ao voltar a si foi um cheiro pronunciado de querosene.
 - Meu Senhor do céu, foi querosene que eu bebi em vez de vodca - exclamou ele, horrorizado. - Ai, meus santos!
O pensamento de que estava envenenado atirou-o de um arrepio de frio num suadouro. Que o veneno fora ingerido, era atestado não só pelo cheiro reinante no quarto, como também pelo ardor da boca, as faíscas nos olhos, o badalar de sinos na cabeça e as pontadas no estômago. Sentindo a aproximação da morte e não se iludindo com vãs esperanças, ele desejou despedir-se dos entes mais próximo e dirigiu-se para o quarto de Dáchenka. (Sendo viúvo, ele tinha consigo, como dona da casa, a sua cunhada Dáchenka, uma solteirona).
 -Dáchenka - disse ele com voz lacrimosa, entrando no quarto. Dáchenka querida!
Algo mexeu-se na escuridão e soltou um suspiro profundo.
 - Dáchenka!
 - Hein? O quê? - disse rapidamente uma voz feminina. - É o senhor, Piotr Petróvitch? Já voltou? Então, como foi? Como batizaram a menina? Quem foi a madrinha?
 - A madrinha foi Natália Andrêievna Velikosvétskaia, e o padrinho, Pável Ivánitch Bessónitzin... Eu... Dáchenka, parece que estou morrendo. E a recém-nascida foi chamada de Olimpíada, em homenagem à sua benfeitora...
Eu... Dáchenka, eu bebi querosene...
 - Esta agora! Mas então lá serviram querosene?
 - Confesso que eu queria, sem a sua licença, beber vodca, e... Deus me castigou: inadivertidamente, no escuro, bebi querosena... Que é que vou fazer?
Dáchenka, ouvindo que o armário fora aberto sem sua permissão, animou-se... Rapidamente, acendeu uma vela, saltou da cama e, de camisola, sardenta, ossuda, de papelotes, chapinhou com os pés descalços até o armário.
 - E quem foi que lhe permitiu isso? - perguntou ela com severidade, examinando o interior do armário. - Então a vodca foi posta aí dentro par ao senhor?
 - Mas eu, Dáchenka... eu não bebi vodca, mas querosene... - balbuciava Stríjin, enxugando o suor gelado.
 - E para que precisava mexer no querosene? Então isso é da sua conta? É para o senhor que ele está lá? Ou será que o senhor acha que querosene não custa dinheiro? Hein? Mas o senhor sabe quanto custa hoje o querosene? Sabe?
 - Dáchenka querida! - gemeu Stríjin. - Trata-se de uma questão de vida ou morte, e a senhora fala em dinheiro!
 - Tomou uma bebedeira e mete o nariz no armário! - gritou Dáchenka, batendo a porta do armário com raiva.
 - Oh, monstros, atormentadores! Sofredora que sou, mártir desgraçada, não tenho paz nem de dia, nem de noite! Àspides, basiliscos, Herodes amaldiçoados, oxalá sofram o mesmo no outro mundo! Amanhã mesmo me vou! Sou donzela e não lhe permitirei ficar na minha frente estando eu em trajes menores! Não se atreva a olhar para mim, quando não estou vestida.
E desandou, e desandou... Sabendo que, quando Dáchenka ficava zangada, não era possível dominá-la nem com súplicas, nem com juramentos, nem mesmo com tiros de canhão, Stríjin abanou a mão desanimado, e resolveu procurar um médico. Mas um médico só é fácil de encontrar quando não se precisa dele. Percorrendo três ruas e tocando umas cinco vezes na porta do dr, Tcheparianz e umas sete vezes na do dr, Bultihin, Stríjin correu para a farmácia: quem sabe o farmacêutico poderia ajudá-lo. Aí, depois de longa espera, saiu-lhe ao encontro um boticário miúdo, moreno e crespo, estremunhado, de bata, e com um rosto tão sério e inteligente, de fé judaica.
 - Pelo amor de Deus... Eu lhe suplico! - articulou Stríjin, sufocando. - Dê-me alguma coisa... Agora há pouco, por descuido, eu bebi querosene! Estou morrendo!
 - Peço-lhe que não se excite e que responda às perguntas que eu lhe farei. Já o simples fato de que o senhor está excitado não me permite compreendê-lo. O senhor bebeu querosene? Si-im?
- Sim, querosene! Salve-me, por favor!
O farmacêutico, calmo e sério, aproximou-se do balcão, abriu um livro e mergulhou na leitura. Tendo lido duas páginas, ele encolheu um ombro, depois outro, fez uma careta de desdém e, após pensar um pouco, entrou no aposento adjacente. O relógio bateu quatro horas e, quando ele mostrava quatro e dez, o farmacêutico voltou com outro livro e novamente mergulhou na leitura.
 - Hum! - disse ele, como que perplexo. - Já pelo simples fato de que o senhor não se sente bem, é preciso que o senhor se dirija a um médico, e não à farmácia.
 - Mas eu já estive nos médicos! Não consegui falar com eles!
- Hum!... A nós, farmacêuticos, os senhores não consideram humanos, e incomodam-nos às quatro da madrugada, quando cada cachorro, cada gato tem o seu sossego...
Os senhores não querem compreender nada, e, na sua opinião, nós não somos gente e nossos nervos tem que ser como cordas.
Stríjin ouviu o farmacêutico, suspirou e voltou para casa.
"Quer dizer que o meu destino é morrer!" pensava ele. E sua boca ardia e cheirava querosene, ele sentia pontadas no estômago e nos ouvidos lhe soava: bum, bum, bum!
A cada momento parecia-lhe que o fim já estava próximo e que o coração já não batia mais...
Chegando em casa, ele apressou-se a escrever: "Peço não culpar ninguém pela minha morte", depois fez a sua oração, deitou-se e cobriu-se, cabeça e tudo. Ficou sem dormir até de manhã, esperando a morte, e o tempo todo, na imaginação, ele via como a sua sepultura se cobria de grama verde e fresca e como sobre ela gorjeavam os passarinhos...
Mas de manhã, sentado na cama, ele dizia, sorrindo, a Dáchenka?
 - Quem leva uma vida correta e regrada, minha cara irmãzinha, não há veneno que o afete. Pode-se tomar a mim como exemplo. Eu estava à beira do fim, eu morria, agonizava, e agora - nada. Só tenho um ardor na boca e uma secura na garganta, mas todo o corpo está bom, graças a Deus... E por quê? Por causa da vida regular.
 - Não, isso significa que o querosene não presta! - suspirava Dáchenka, pensando nas despesas e fixando o olhar num ponto. - Significa que o vendeiro não me deu do melhor, mas daquele de um copeque e meio a libra. Mártir que eu sou, sofredora infeliz, monstros torturadores, oxalá passem o mesmo no outro mundo, Herodes amaldiçoados...
E desandou, e desandou...

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